O solo "Vozes do outono" foi aprovado pela Lei de Incentivo à Cultura pelo Edital 265-10 de Pesquisa em Dança da Casa Hoffmann Centro de Estudo de Movimentos em 2011 pela Fundação Cultural de Curitiba. A estreia aconteceu no dia 27 de setembro de 2011 no evento DANCON Liga Cultural de Dança em Belo Horizonte.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Livro Chocolate - O Encontro – por Heloisa Neves

Texto original retirado do blog da autora: http://dosencontros.blogspot.com/

... o contato re-estruturante entre corpo e objeto

O termo encontro tem como base os diversos estudos que, a cada dia, vêm comprovando a relação inseparável entre corpo e ambiente. Esses estudos, que estão sendo realizados principalmente no campo das ciências cognitivas e da filosofia da mente, afirmam que um fenômeno somente se processa no momento em que há um ‘contato’ entre corpo e objeto, através do qual as barreiras entre o meio interno e externo são quebradas. Essa maneira de olhar para o mundo baseia-se em uma lógica conceitual emergente e auto-organizativa e não mais determinista, ou seja, amparada por um mecanismo de causa e efeito. Isso faz com que o mundo seja visto a partir de uma lógica sistêmica complexa e integrativa, onde nenhum elemento pode estar ‘fora’ da ação. Dentro e fora, corpo e ambiente devem ser estudados juntos porque a esta altura não é possível insistir em uma fronteira intransponível entre essas duas instâncias. Seguindo esse ponto de vista, o encontro seria a própria ação de entrar em contato com algo ou alguém, a qual causará uma consequentemente reorganização em ambos os lados. Ao estudar o encontro, nos deparamos com algumas teorias já bastante familiares. No entanto, a grande diferença é a nova maneira de se olhar para esse objeto. A percepção é um desses casos. O encontro é, acima de tudo, uma ação perceptiva. Mas esta é somente uma faceta do encontro, a parte mais íntima do processo.
Podem-se verificar milhares de encontros no dia-a-dia, o corpo está constantemente em contato com muitos objetos, situações e pessoas. No entanto, dentre toda essa variedade, essa pesquisa busca entender o encontro que se processa entre corpo e cidade. A escolha por esse fenômeno, em especial, se deu primeiro por eu ser arquiteta e possuir uma paixão pelas cidades; e segundo por existir uma carência de estudos recentes nessa área junto à arquitetura e urbanismo. Nas faculdades de arquitetura, a bibliografia usada ainda hoje para o estudo da percepção do espaço e áreas afins tem por base os estudos da fenomenologia[1] e behaviorismo[2], teorias que já estão sendo reformuladas pelos recentes estudos das ciências cognitivas. Esse fato não se restringe somente à arquitetura, muitas áreas estudam a percepção a partir dessas bases. Historicamente, os filósofos da fenomenologia foram um dos primeiros a tentar desvendar essa intrigante relação corpo-objeto. Com a ampla divulgação da filosofia de Heidegger e Merleau-Ponty e, mais tarde, com o advento do Behaviorismo, o estudo da relação entre o corpo (meio interno) e o objeto (meio externo) começou a ser cada vez mais requisitado. Na arquitetura, um dos primeiros arquitetos a tratar esse fenômeno foi Kevyn Lynch,[3] através dos estudos que culminaram no livro “A Imagem da Cidade” (1970). Nele, Lynch busca entender como cada pessoa constrói seus marcos na cidade, como cada pessoa constrói sua imagem da cidade.
Voltando à explicação do encontro (e agora já deixando claro onde estamos buscando nossas bases), pode-se dizer que a percepção é um dos elementos fundamentais do encontro e vem sendo estudada de maneira bastante inovadora por muitos cientistas. O encontro é um ato perceptivo, mas não é só isso. O estudo da percepção vem sempre acompanhado do estudo de dois outros tópicos fundamentais: as emoções e os sentimentos. Como sentimentos e emoções estão sendo estudados enquanto fenômenos necessariamente processados não só na mente, mas também no corpo, avança-se no estudo da percepção a partir do momento que passamos a estudá-la de uma forma mais ampla. A busca é por descobrir a relação essencial no ‘entre’ da percepção, isto é, na inseparabilidade do processo sensório e motor, já que as estruturas cognitivas emergem dos mapas recorrentes deles, os quais permitem que a ação seja guiada pela percepção, emoções e sentimentos. Sendo as percepções, sentimentos e emoções os conceitos fundamentais do encontro, deve-se dizer que o encontro é um processo contínuo e sempre expresso de duas maneiras: uma totalmente íntima, onde somente quem está realizando a ação pode ‘tocar’; e uma segunda que pode ser externalizada e compartilhada com outras pessoas através de um regime coletivo e cooperativo. O encontro interno e individual, invisível para o público em geral, escondido de quem quer que seja, exceto do seu proprietário, é expresso através do sentimento e da percepção. O encontro que se dá através de ações e movimentos públicos que se processam no rosto, na voz ou em comportamentos específicos, ou ainda aqueles que não são perceptíveis a olho nu, mas que podem se tornar visíveis com sondas científicas modernas (como a determinação de níveis hormonais sanguíneos ou de padrões de ondas eletrofisiológicas) é chamado de emoção.
O processo do encontro está totalmente enraizado na noção de subjetividade. No entanto, como esse é um termo que pode ser entendido de muitas maneiras, por ser usado por muitas linhas de estudo; torna-se necessário especificar melhor o que estamos entendendo por subjetividade. Buscamos esse esclarecimento nas pesquisas de George Lakoff e Mark Johnson[4], cujo trabalho possui coerência com as idéias dos neurologistas aqui estudados. Segundo Lakoff e Johnson (1999), a subjetividade depende do corpo em que se estabelece. Não existe interação somente entre objeto e mente, mas necessariamente entre objeto, corpo e mente. Além da experiência mental/subjetivizada, existe uma experiência sensório-motora. As duas estão sempre em interação, uma não existe sem a outra e o conhecimento depende dessa interação. Tradicionalmente, a subjetividade seria a parte imaterial do processo, algo abstrato. No entanto, nem mesmo essa palavra – imaterial - é aceita pelos novos estudos da subjetividade, porque ela vem sendo entendida juntamente com o aspecto corporal, físico (algo totalmente material). Não existe mais dualidade entre concreto e abstrato, corpo e mente. Nas ciências cognitivas, as teorias refutam o dualismo mente-corpo e o reducionismo das redes neurais e empregam modelos dinamicistas. O processo de percepção, por exemplo, parte e é inerente aos arranjos disposicionais do corpo no tempo e espaço. Como atestam Lakoff e Johnson (1999), as primeiras organizações neurológicas pré-cognitivas têm por base a relação espaço-direcional do corpo, que fundam as metáforas primárias e defendem que é o corpo em sua natureza que formata as conceituações. Sendo assim, o processo de percepção seria um processo espaço-temporal porque é obtido tanto pelas propriedades baseadas no corpo e mente quanto por suas projeções no espaço. Tais processos são a base da cognição humana, o que nos leva a entender que o corpo é algo fundamental em qualquer processo de subjetividade. Isso muda radicalmente o entendimento anterior de percepção e cognição distante do corpo, enquanto processos puramente mentais. A subjetividade não se refere, portanto, a uma idéia abstrata relacionada a uma alma ou mente separada do corpo. A subjetividade deve ser entendida enquanto um processo que ocorre simultaneamente no corpo, mente e ambiente e que surge a partir de um ponto de vista que o organismo assume em sua relação com o objeto. Sendo assim, dualismos como: o que está dentro do corpo é subjetivo e o que está fora do corpo é objetivo também devem ser entendidos como um pensamento errôneo. Não há como localizar o subjetivo e o objetivo, porque as fronteiras entre dentro e fora também estão muito tênues.
Entendendo-se que não há mais barreira dentro – fora, torna-se interessante entender como os corpos recebem os objetos que percebem. A relação é sempre por imagens. Os corpos percebem os objetos e os subjetivizam através de imagens mentais. Desde que o corpo ‘toca’ um objeto e dá inicio ao processo do encontro, ele entende tudo que recebe enquanto ‘imagem’. Qualquer objeto, situação ou outro corpo que alguém percebe (visualiza, escuta, sente...) ‘entra’ em seu corpo na forma de imagem. O mundo é visto através de imagens, sejam elas imagens sonoras, imagens visuais ou imagens sensoriais. Um objeto (DAMÁSIO, 2000) pode ser uma pessoa, um lugar, uma melodia, uma dor de dente ou um estado de êxtase. Imagem designa um padrão mental em qualquer modalidade sensorial, como, por exemplo, uma imagem sonora, uma imagem tátil, a imagem de um estado de bem-estar. Estas imagens comunicam não apenas características físicas do objeto, como também afetos em relação a ele e à rede de relações deste objeto em meio a outros objetos.
Assim como é importante entender os termos subjetividade e imagem, se torna fundamental desmistificar a igualdade entre os termos emoção e sentimento e verificar qual é sua relação com a percepção. Apesar de não raramente estes termos parecerem significar uma mesma coisa, o neurocientista António Damásio explica que eles estão intimamente ligados ao processo perceptivo, mas correspondem a ações bastante específicas. Damásio (2003) chegou à conclusão de que existe uma tênue, mas importante separação entre emoção e sentimento a partir de experimentos práticos em laboratório, onde primeiramente foi confirmado que as emoções e os sentimentos se processam em lugares diferentes do cérebro e, posteriormente, que é possível uma pessoa perder a capacidade de sentir certa emoção, permanecendo com a capacidade de continuar com o correspondente sentimento. Em alguns experimentos, por exemplo, seus pacientes podiam exibir uma expressão de medo, mas não sentir medo. Essas conclusões foram obtidas com a ajuda de técnicas de neuroimagem, que permitem a criação de imagens da anatomia e atividade do cérebro humano. “A emoção e o sentimento eram irmãos gêmeos, mas tudo indicava que a emoção tinha nascido primeiro, seguida pelo sentimento, e que o sentimento se seguia sempre à emoção como uma sombra.” (DAMÁSIO, 2003, p.14). A emoção e as várias reações com ela relacionadas estão alinhadas com o corpo, enquanto os sentimentos e a percepção estão alinhados com a mente. Isso não deve levar à conclusão de que são coisas separadas. Corpo e cérebro, emoção e sentimento andam sempre juntos, apesar de se expressarem em lugares distintos. Um objeto (imagem externa ou interna[5]) pode desencadear uma emoção, porém somente as modificações com que o corpo passa após receber essa imagem podem ser chamadas de sentimento. Esse processo de reorganização corporal, o qual damos o nome de sentimento pode ser entendido também enquanto percepção. As percepções visuais, por exemplo, correspondem a objetos exteriores ao corpo cujas características físicas alteram o estado das retinas e modificam, temporariamente, os padrões sensitivos dos mapas do sistema visual. Os sentimentos também podem ser entendidos enquanto modificações sofridas pelo corpo, as quais foram desencadeadas por um objeto. A única diferença entre sentimento e percepção é que o objeto que desencadeia a percepção é uma imagem externa (a cidade como é o caso dessa pesquisa) e a imagem que desencadeia o sentimento é uma imagem interna (uma lembrança de alguma situação, de algum objeto, uma memória). Na percepção, portanto, uma parte do fenômeno é devida à construção interna que o cérebro faz de um objeto. Ao contrário, os objetos e situações que constituem as origens imediatas da essência do sentimento estão colocados dentro do corpo e não fora dele. “Os sentimentos são tão mentais como qualquer outra percepção, mas os objetos imediatos que lhes servem de conteúdo fazem parte do organismo vivo do qual os sentimentos emergem.” (DAMÁSIO, 2003, p.98). Como o encontro aqui estudado é com a cidade, objeto externo ao corpo, trabalharemos o encontro estudando somente a percepção e não sentimento, mas isso não exclui a similaridade entre os dois termos.
Todos os corpos, principalmente os habitantes das cidades, praticam necessariamente os três níveis do processo do encontro: a emoção, a percepção, e o sentimento. Essas ações são importantes no próprio processo evolutivo. O processo do encontro inicia necessariamente com a emoção, quando um corpo se emociona e expressa essa emoção em relação a um objeto. Após emocionar-se com esse objeto, o corpo passa por alguns ajustes e mapeamentos que lhe provocarão um outro estado: o sentimento ou a percepção, dependendo da situação do objeto.
Falando mais especificamente das emoções, pode-se dizer que são processos pouco complexos dentro do plano da sobrevivência e são responsáveis por respostas simples como aproximação ou retraimento de um organismo inteiro em relação a um objeto, ou ainda a outras respostas como excitação ou quiescência. As emoções são coleções de respostas reflexas cujo conjunto pode atingir níveis de elaboração e coordenação extraordinários. O processo emotivo trabalha muitas áreas do organismo, o qual vai se complexificando até que o corpo produza a percepção. Abaixo, estão variados ajustes que o corpo faz a partir do momento em que inicia o encontro. Os ajustes citados estão embasados nas pesquisas de António Damásio (DAMÁSIO, 2003, p.38, 39 e 40):
· Em um nível mais baixo, a emoção trabalha os processos metabólicos. Esse processo inclui componentes químicos e mecânicos (secreções endócrinas/hormonais, contrações musculares relacionadas com a digestão) que mantêm o equilíbrio químico interior. Essas reações governam o ritmo cardíaco e a pressão arterial, dos quais dependem a distribuição apropriada do fluxo sanguíneo no corpo, os ajustamentos da acidez e da alcalinidade do meio interior (os fluidos que circulam no sangue e nos espaços entre as células) e o armazenamento e distribuição de proteínas, lipídeos e carboidratos, necessários para abastecer o organismo de energia, que por sua vez, é necessária para o movimento, fabricação de enzimas e para manter e renovar a estrutura do organismo.
· Também trabalha os reflexos básicos como o reflexo de startle (alarme ou susto), que os organismos exibem quando reagem a um ruído inesperado; e os tropismos ou ‘taxes’, que levam os organismos a escolher a luz e não o escuro, ou a evitar o frio e o calor extremos.
· O sistema imunológico que defende o organismo de vírus, de bactérias, de parasitas e de moléculas tóxicas que podem invadir o organismo.
· Comportamentos associados à noção de prazer (e recompensa) ou dor (e punição). Esses comportamentos incluem reações de aproximação e retraimento do organismo em relação a um objeto ou situação específicos. No seres humanos, os quais podem de alguma maneira relatar aquilo que sentem, essas reações são descritas como dolorosas ou aprazíveis, como recompensadoras ou punitivas. Esses comportamentos são uma série de ações, por vezes sutis, por vezes óbvias, com as quais a natureza tenta restabelecer o equilíbrio biológico de forma automática. Dentre essas ações, faz parte o retraimento do corpo (ou de uma parte dele), em relação à origem do problema, a proteção da parte do corpo afetada e expressões faciais de alarme e sofrimento. Essas ações são acompanhadas de diversas respostas, invisíveis a olho nu, organizadas pelo sistema imunológico. A parte visível desse processo culmina com a dor ou o prazer.
· Certas pulsões e motivações como a fome, sede, curiosidade e os comportamentos exploratórios, os comportamentos lúdicos e sexuais.
· As emoções propriamente ditas. Da alegria à mágoa, do medo ao orgulho, da vergonha à simpatia. Existem três tipos de emoção propriamente dita, as emoções de fundo, as emoções primárias e as emoções sociais. Depois do aparecimento desse tipo de emoção, a percepção do objeto está por vir.
A emoção se esquematiza da seguinte maneira: uma emoção é uma coleção de respostas químicas e neurais que formam um padrão distinto. Essas respostas são produzidas quando o cérebro normal detecta um estímulo, o objeto cuja presença real desencadeia a emoção. Importante ressaltar que as respostas são automáticas. O cérebro responde aos estímulos com repertórios e ações muito específicos. No entanto, a lista dos estímulos não se limita aos que foram criados pela evolução, inclui também outros adquiridos pela experiência individual; os quais ainda não possuem respostas muito específicas ou prontas. O resultado dessas respostas é uma alteração temporária do estado do corpo e do estado das estruturas cerebrais que mapeiam o corpo e sustentam o pensamento. O final desse processo é reagir ao objeto a fim de que direta ou indiretamente o corpo possa entrar em circunstância de bem-estar. Esses são os comportamentos clássicos da emoção, apesar da separação das fases do processo e o valor de cada uma não ser convencional, segundo comprova Damásio. (DAMÁSIO, 2003, p.61). As emoções são um meio natural de encontrar o ambiente, no caso dessa pesquisa, a cidade; reagindo de forma adaptativa. Podemos encontrar a cidade e seus diversos objetos conscientemente ou inconscientemente. Quando a encontrarmos conscientemente, estamos realmente avaliando, notando a presença de um objeto, sua relação com outros objetos e com o passado. Quando o encontro é consciente, podemos modular as reações. Quando ocorre um encontro inconsciente, ainda assim a emoção continua a fazer parte do processo e indica que o organismo avaliou de maneira menos atenta a situação. Por isso podemos dizer que o encontro é também uma reação automática do corpo de tal maneira que não é possível viver em uma cidade sem se ‘embriagar’ dela. Aliás, a maior parte dos objetos que nos rodeia acaba por ser capaz de desencadear emoções, sejam elas fortes ou fracas, boas ou más. Alguns espaços da cidade ou situações nos encontram por razões evolucionárias. Mas, outros se transformam em estímulos emocionais criados pela experiência individual. Por isso dizemos que os significados nem sempre estão prontos, mas sim a serem significados durante o ato do encontro. Apesar de bastante completas, a evolução e a história não têm respostas para todas as situações, sendo necessário aos corpos encontrar formas criativas de reagir a elas. A emoção é a parte do processo do encontro que pode ser trabalhada na coletividade. É visível e externa e por isso se encontra completamente exposta a muitas contaminações tanto da cidade quanto de outros corpos. Os estímulos do ambiente e as influências dos outros corpos são detectados facilmente pelos corpos, os quais respondem impensadamente com a emoção.
Quando as conseqüências da emoção são mapeadas no cérebro, o resultado é o sentimento ou a percepção. São eles que abrem a porta para o controle voluntário daquilo que até então era automático. Segundo Damásio, a percepção assim pode ser descrita: “um organismo está empenhado em relacionar-se com algum objeto, e o objeto nessa relação causa uma mudança no organismo.” (DAMÁSIO, 1999, p.38). Essa relação existente entre corpo e objeto é vital. Perceber o mundo é algo inevitável para qualquer um de nós. Para explicar melhor como podemos perceber algo, devemos começar dizendo que acima de qualquer coisa existe uma perspectiva individual e muito subjetiva[6]. Damásio propõe um exercício prático para essa situação, onde pede que nos imaginemos atravessando uma rua e, de repente aparece um carro vindo rapidamente em nossa direção. A percepção que temos desse carro vindo em nossa direção é a percepção do corpo que está vivendo a situação, e não pode ser o corpo de mais ninguém. Uma pessoa que está no terceiro andar de um prédio e vê a mesma cena, percebe de um ponto de vista diferente, o do corpo dela. Enquanto o carro se aproxima, uma série de ajustes corporais são feitos rapidamente. A sinalização dessas mudanças são um meio de implementar na mente dessa pessoa a percepção do seu corpo. Essa percepção acontece primeiro graças ao seu sistema perceptivo específico e segundo através dos variados ajustes que são efetuados simultaneamente por diferentes setores musculares do corpo e pelo sistema vestibular. Há também sinais derivados das reações emocionais a um objeto específico. Estes ajustamentos descrevem tanto o objeto (que nesse exemplo é o carro) que ganha vulto ao aproximar-se do organismo, quanto as reações do organismo em direção ao objeto, à medida que o organismo se regula para manter um processamento satisfatório do objeto. "Para perceber um objeto, visualmente ou de algum outro modo, o organismo requer tanto os sinais sensoriais especializados como os sinais provenientes do ajustamento do corpo, que são necessários para a ocorrência de percepção.” (DAMÁSIO, 1999, p.192).
Quando alguém ouve uma música ou é tocado por um objeto, o mapa formado é sempre em relação ao próprio corpo, pois ele é traçado com base nas modificações sofridas por seu organismo durante os eventos de ouvir ou tocar. A forma como o organismo percebe, ou seja, o mapa que o organismo faz durante o processo de percepção é essencial para a resposta que dará ao objeto. “A perspectiva correta em relação ao carro que se aproxima é importante para que se arquitete o movimento com o qual vai se escapar do veículo, e o mesmo se aplica à perspectiva de uma bola que se deve apanhar com a mão. O senso automático da condição de agente individual nasce naquele exato momento.” (DAMÁSIO, 1999, p.194).
O sistema que, supostamente, transmite os sinais e faz com que todo esse processo descrito acima ocorra chama-se sistema sômato-sensitivo. Esse sistema designa a percepção sensitiva do soma, palavra que significa corpo. No entanto, geralmente se usa esse termo restritivamente, sendo evocado somente para se referir ao tato ou à sensação nos músculos e nas articulações. No entanto, esse sistema relaciona muitas outras coisas, na verdade relaciona uma combinação de vários sistemas responsáveis por transmitir ao cérebro sinais sobre vários aspectos do corpo. Enfim, esse sistema é responsável por mapear o corpo enquanto realiza a percepção e transmitir essa informação ao cérebro. Esse mapeamento é feito por diferentes mecanismos, alguns não usam nem ao menos os neurônios para fazer a transmissão, mas sim substâncias químicas que estão disponíveis na corrente sanguínea. Apesar das percepções corporais serem mapeadas por diferentes mecanismos, elas atuam em perfeita cooperação produzindo uma infinidade de mapas dos vários estados perceptivos do corpo, em qualquer momento.
Quando um objeto é percebido, os órgãos sensoriais periféricos como o olho ou o ouvido, são acionados sensorialmente. Geralmente são acionados simultaneamente. “Não existe percepção pura de um objeto em um canal sensorial, por exemplo, a visão ou audição, as mudanças simultâneas não são um acompanhamento opcional. Essas sensações são transmitidas ao córtex cerebral. Além dos córtices sensoriais primários, podemos acionar também mapas neurais, caso o objeto percebido ative alguma memória dessa representação. Quando o objeto atinge o córtex sensorial, há uma primeira representação a partir do processamento de cores, formas, movimentos e freqüências auditivas. A partir daqui, o corpo passa a realizar ajustes motores necessários para que os sinais do objeto continuem a ser reunidos por ele e então uma segunda representação é formada. Essa segunda representação é a relação entre objeto, organismo e a relação dos dois. Resumindo, o encontro perceptivo acontece quando a imagem do objeto afeta um corpo (e isso acontece a todo momento). A percepção que esse corpo tinha antes de ter recebido essa imagem era diferente, possuía um desenho diferente do que a que ele tem nesse momento. Agora, a imagem do objeto que o corpo percebeu através do encontro afetou-o de tal maneira que ele precisou se reorganizar, se reestruturar, modificar seu desenho. Como o próprio estado do organismo é afetado nesse encontro, havendo uma acomodação interna da imagem externa, diz-se que o evento possui um contexto espacial e temporal. O corpo entrou em interação com o objeto e se transformou. Ou seja, não existe percepção pura de um objeto porque, além da imagem já chegar ao até o corpo através da simultaneidade de sentidos (o olho enxerga junto com o tato que sente e com o nariz), ao entrar no organismo passa por ajustamentos corporais necessários para sua perfeita percepção.
Esse mapeamento que se cria em trânsito é elaborado ou organizado através da permeabilidade da fronteira dentro-fora já que ela está sendo continuamente alterada por encontros com objetos ou eventos em seu meio ou também por pensamentos e ajustes internos do processo da vida. Esse mecanismo é extremamente complexo e capta uma imensidão de imagens perceptivas, as quais são geradas a cada segundo. Importante ressaltar que, apesar de extremamente complexo, o processo perceptivo acontece independente de nosso poder de escolha. Perceber é um ato cognitivo que perpassa nossa própria vontade, e por isso se torna tão vital quanto respirar. A percepção é uma atividade colaborativa entre um corpo e no mínimo um objeto. A percepção é uma atividade do ambiente processada no corpo, nós somos o mundo e o mundo vive através de nós. (Katz e Greiner, 2004) A percepção e as “sensações, emoções, pensamentos, imagens, idéias não operam sobre o corpo, são o corpo, são expressões da dinâmica estrutural do sistema nervoso em seu presente.” (MATURANA e VARELA, 2001, p.38).
E, se existe uma cooperação entre exterior e interior ali, ela também se faz presente entre os próprios mecanismos internos do corpo. Por exemplo, quando existe uma percepção visual, o nervo óptico estabelece a ligação entre os olhos e uma região do hipotálamo designada por núcleo lateral geniculado e daí até o córtex visual. A explicação que estamos acostumados a ouvir sobre esse mecanismo perceptivo visual é que a informação entra através dos olhos e é retransmitida sequencialmente através do tálamo ao córtex para processamento adicional. Mas, se observarmos melhor e entendermos que a percepção trabalha criando mapas do objeto e do corpo ao mesmo tempo, veremos que essa informação não faz muito sentido. “É evidente que 80 por cento daquilo que qualquer célula LGN escuta não provém da retina, mas sim da densa interconexão de outras regiões do cérebro. Além disso, podemos ver que há mais fibras vindo do córtex para o LGN do que aquelas que seguem no sentido oposto. Olhar para os circuitos visuais como constituindo um processador seqüencial parece inteiramente arbitrário; seria igualmente fácil ver a seqüência ir no sentido inverso.” (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 1991, p.134).
Portanto, o encontro é mais uma ação conjunta entre as diversas partes envolvidas (informações do objeto, córtex visual primário, formação reticular, descarga corolária de neurônios que controlam o movimento dos olhos...) do que um processo que faz com que somente um dos elementos envolvidos cumpra a ação, como se fosse possível uma informação com uma direção de atuação definida. Esse mecanismo de reconhecimento de um objeto é concebido atualmente como emergência de um estado global. O estado global envolve mais elementos do que se imaginava há pouco tempo. Ao se estudar a visão, atualmente, devemos prestar atenção à forma do objeto, propriedade de superfície, relações espaciais tridimensionais no espaço e movimento tridimensional. “Essas diferentes modalidades visuais são propriedade emergentes de sub-redes concorrentes, que têm um grau de independência e mesmo uma separabilidade anatômica, mas que se correlacionam e trabalham em conjunto, de tal modo que praticamente em qualquer momento uma percepção visual se torna coerente.” (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 1991, p.213). Além disso, a percepção visual mantém um intercâmbio ativo com outras modalidades sensoriais como as associações de cor e som, bem como cor e percepção horizontal/vertical. “A rede neuronal não funciona como uma rua de sentido único da percepção para a ação. Percepção e ação, sensorium e motorium encontram-se interligados na qualidade de padrões sucessivamente emergentes e mutuamente selecionadores.” (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 1991, p.215)
No encontro corpo-cidade há uma união espaço-tempo-corporal, o qual mapeia a relação corpo-cidade/dentro-fora através de uma relação onde o espaço é o elemento capaz de reconhecer cor, forma, som; o corpo é possuidor de memória, capacidade de reter informação e o tempo é responsável pela recolocação e reorganização dessas informações a cada segundo. Ao pensar nessa relação buscando uma imagem para explicá-la, imagino uma cidade enquanto uma chuva de informações e o corpo caminhando por entre essa chuva. Algumas dessas gotas atingem o corpo e esse toque seria o encontro. Essas gotas que tocaram o corpo, o tocaram por alguns motivos, o encontro não é totalmente ocasional. Há regras, de ambos os lados que fazem com que a cidade e o corpo se toquem mutuamente. Essas regras são bastante diferentes para cada um dos seus habitantes. As gotas que um corpo pode tocar (por seu aparato biológico, por seu repertório memorial e pelas próprias disposições das gotas) são completamente diferentes daquelas que outro corpo pode tocar. Primeiramente, porque estão fisicamente dispostos em lugares distintos, portanto, possuem diferenças espaciais; e segundo porque cada repertório pessoal é muito singular (cada corpo, apesar de ser bastante semelhante, possui ‘n’ informações diferentes que possibilitam ‘n’ conexões). António Damásio faz a seguinte pergunta: “como o cérebro poderia representar o fato de que um objeto, quando um organismo se ocupa com seu processamento, faz com que o organismo reaja e, com isso altera seu estado?” (DAMÁSIO, 1999, p.45). O fato é que percebemos a cidade, ou seja, a encontramos, a partir do momento em que o corpo inicia um processo de representação sem palavras, que seria o mapeamento do próprio estado corporal durante aquele exato momento.
Através dessa nova maneira de entender a percepção, sempre aliada à emoção e ao sentimento, não mais de maneira linear, mas de uma maneira emergente, o corpo-mente torna-se elemento fundamental no processo perceptivo e representacional. Segundo Varela “o papel do meio mudou-se tranquilamente da posição em que era um ponto de referência preeminente, retrocedendo cada vez mais para o pano de fundo, enquanto a idéia da mente como uma rede emergente e autônoma de relações adquiriu uma posição central. Chegou então a altura de pôr a questão: o que há em tais redes, se é que há alguma coisa, de representacional?” (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 1991, p.185). Essa nova forma de ver o processo informacional leva a uma discussão do próprio conceito de informação e comunicação. Conforme nos aproximamos desse tipo de representação, encontramos também um novo jeito de compreender o corpo, passando a ser entendido como mídia que exterioriza informações. Ela se constrói nas intermediações a serem construídas e na previsão, descrita por Rodolfo Llinás[7] de que tal comunicação não busca mais entender os atos reflexos, mas sim os atos enquanto uma aliança entre os níveis de atuação neurofisiológico e fenomenológico (GREINER e KATZ, 2004). Pensamento-movimento, elementos-chave nos processos contemporâneos da comunicação. Cada corpo, redescobrindo-se e retocando-se constantemente através de novos espaços e tempos, novas relações com o ambiente em que está inserido, modifica os meios de comunicação e conseqüentemente torna-se uma mídia muito particular. Por esse viés, o corpo não pode mais ser analisado enquanto um ser separado da natureza e cultura, já que o corpo está completamente entranhado nela. Desde que passamos a olhar o corpo com outros olhos, passamos a enxergar também o ambiente que constitui sua materialidade.
O mapa do encontro, objeto de estudo dessa pesquisa, fala dessa discussão sobre o novo entendimento do corpo, ambiente e cultura porque está no intermeio desses elementos. Construir mapas do encontro é o mesmo que misturar corpos em transformação, colocar forças em tensão. O objetivo desse jogo é fazer com que as partes envolvidas entrem em um processo de reorganização e criação de outros estados, outras imagens; as quais podem ser chamadas de ação, percepção. É através desse encontro que há comunicação/cognição.
[1] A Fenomenologia trata de descrever, compreender e interpretar os fenômenos que se apresentam à percepção. Propõe a extinção da separação entre "sujeito" e "objeto", opondo-se ao pensamento positivista do século XIX. O método fenomenológico se define como uma volta às coisas mesmas, isto é, aos fenômenos, aquilo que aparece à consciência, que se dá como objeto intencional. Seu objetivo é chegar à intuição das essências, ao conteúdo inteligível e ideal dos fenômenos, captado de forma imediata. Na prática da fenomenologia efetua-se o processo de redução fenomenológica o qual permite atingir a essência do fenômeno. A diferença sutil entre a fenomenologia e os estudos recentes de ciencias cognitivas, é a maneira como essa relação corpo-objeto é formada. Nos estudos das ciencias congitivas atuais busca-se chegar à relação incluindo também a organização corporal do processo. Já a fenomenologia acreditava que a busca dessa resposta estaria somente no cérebro ou nas organizações de uma suposta “alma”, tanto para os objetos quanto para as coisas.
[2] Behaviorismo (Behaviorism em inglês, de behaviour (RU) ou behavior (EUA): comportamento, conduta), ou comportamentalismo, é o conjunto das teorias psicológicas que postulam o comportamento como único, ou ao menos mais desejável, objeto de estudo da Psicologia. Os behavioristas afirmam que os processos mentais internos não são mensuráveis ou analisáveis, sendo, portanto, de pouca utilidade para a psicologia empírica.
[3] Kevin Lynch foi urbanista e escritor. Escrevia sobre urbanismo, aplicando práticas ainda não conhecidas para analisar a cidade.
[4] Lingüista e filósofo contemporâneo, estudam dentre outras coisas os conceitos de metáfora e subjetividade.
[5] Objeto externo deve ser entendido enquanto qualquer objeto existente no mundo, externo ao corpo. Objeto interno deve ser entendido enquanto a própria recriação interna de um objeto externo, ou seja, quando o corpo relembra algum objeto externo.
[6] Subjetivo entendido como foi exposto acima.
[7] Rodolfo Llinás é neurocientista, estudioso dos princípios do movimento e da consciência como ignições para os processos de comunicação com o ambiente.

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