O solo "Vozes do outono" foi aprovado pela Lei de Incentivo à Cultura pelo Edital 265-10 de Pesquisa em Dança da Casa Hoffmann Centro de Estudo de Movimentos em 2011 pela Fundação Cultural de Curitiba. A estreia aconteceu no dia 27 de setembro de 2011 no evento DANCON Liga Cultural de Dança em Belo Horizonte.

domingo, 20 de março de 2011

Ohno, um filósofo que dança / Para sempre

(Texto original retirado do idança nesse link aqui. Yiuki)


Dia 27 de outubro, o coreógrafo japonês Kazuo Ohno completa 103 anos. Em homenagem à data e à importância do trabalho de Ohno – ele é um dos precursores do butoh – o idança traz dois textos publicados originalmente na revista Obscena, nossa parceira. O primeiro deles, escrito por John Barret, traz uma interessante biografia de Ohno. E o segundo, de Tiago Manaia, fala da influência do coreógrafo no trabalho da banda Antony & the Johnsons. Confira os dois abaixo. Ao final da leitura, clique aqui e aproveite para assistir a um trecho de The dead sea, de 1985, publicado pelo idança em abril de 2008.




Detentor de um estilo de movimento raro, gracioso e também enganadoramente simples, Kazuo Ohno, mais do que dançar, simboliza uma filosofia sobre os limites do corpo. Retrato de um homem que apelidaram de árvore.

Texto de John Barret

Kazuo Ohno, o artista japonês de butoh, está a poucos meses de celebrar o centésimo terceiro aniversário, a 27 de outubro. Enquanto cidadão e artista, Ohno tem sido contemporâneo dos eventos que de forma mais incisiva marcaram a história recente do Japão: o terramoto em Kanto (1923), a Guerra do Pacífico (1937-45), as bombas atómicas largadas em Hiroshima e Nagasaki, a ocupação americana (1945-51), os altos e baixos que sucederam o milagre económico dos anos 60.

Até 2004, ano em que se retirou dos palcos, cada aparecimento seu conduzia o corpo humano até aos seus limites. Hoje, e apesar do nevoeiro do Alzheimer, Ohno continua um verdadeiro filho-do-teatro. Talvez o seu último desejo seja morrer em palco, rodeado dos fantasmas dos seus tão queridos amigos, da sua mãe e La Argentina.

Nascido a 27 de outubro de 1906 em Hokkaido, a ilha do Japão mais a norte do arquipélago, Ohno é filho mais velho de um pescador e de uma mãe a quem era particularmente apegado. Embora dotada de grande sensibilidade artística, a sua mãe teve pouco tempo para desenvolver os seus talentos, dedicando a sua vida a cuidar de 10 crianças. Embora tenha sido, profissionalmente, professor de educação física de profissão, Ohno iniciou as suas aulas de dança ao deslocar-se para Tokyo, no início dos anos 30.

Baptizado em 1931, tornou-se um membro activo da igreja Anabaptista e foi um cristão devoto desde então. Depois de ser mobilizado, em 1938, passou os sete anos seguintes em diferentes frentes de guerra, onde, como capitão no comando de mantimentos, entrou em contacto com a inumanidade e carnificina dos homens quase diariamente. No rescaldo da capitulação japonesa no fim da Guerra do Pacífico, foi internado pelas forças australianas na Nova Guiné. Sobre o seu repatriamento em 1946 resumiu o seu posto como professor de ginástica na Escola Feminina Anabaptista Soshin, em Yokohama, lá permanecendo lá até à sua reforma em 1980.

Paralelamente à sua carreira de professor, Ohno criou uma série de performances que produziram um efeito sísmico no mundo da dança japonês. Durante os anos 60 foi um participante activo no próspero movimento do butoh, colaborando regularmente com Tatsumi Hijikata, outra figura de particular peso na vanguarda japonesa. Foi por esta altura que começou também a dar “workshops abertos” no estúdio de ensaio que construiu com as suas próprias mãos no subúrbio Yokohama de Kamihoshikawa. Em alguns aspectos, Ohno era mais um filósofo do que um professor de dança, e os seus workshops convocavam pessoas com distintos modos de vida. Não era incomum que os alunos se colocassem mais perguntas ao abandonarem a aula do que antes de terem colocado um pé no estúdio.


Curiosamente para um bailarino, a carreira de palco de Ohno apenas levantou voo no fim dos anos 40, altura em que estava já nos seus jovens quarentas – idade em que, nos círculos da dança ocidental, os bailarinos contemplam a reforma. No Japão não é invulgar um artista de dança tradicional continuar a actuar até aos 80. O seu primeiro recital a solo público em Tokyo, em 1949, lançou uma carreira que continuou sem cessar até aos tardios anos 60.

O que se seguiu foi um hiato de 10 anos, vagueando pelo deserto das sortes, período durante o qual passou por uma profunda transformação tanto na sua abordagem à dança como na vida. O seu regresso deu-se em 1977 com a performance Admirando La Argentina, que aliava história privada e episódios fantasmagóricos, numa estrutura inesquecível de grande dor, argúcia e júbilo. Até então Ohno não tinha sido alvo de reconhecimento universal mas, em 1980, quando a apresenta a uma enorme e receptiva audiência no Festival Internacional de Nancy, o mundo é alertado para o estouvado génio de Kazuo Ohno. Foi a primeira de uma série de criações dedicadas àqueles por quem que se sentia em dívida. Como o título sugere, esta peça é uma homenagem a Antonia Mercê y Luque (1890-1936), mais conhecida como La Argentina, provavelmente a bailarina espanhola mais celebrada do século XX, e que Ohno viu actuar em Tokyo, em 1929. Ao mesmo tempo que, e em certa medida, Admirando La Argentina pode ser considerado como um poderoso retrato da sua musa pessoal, é também altamente confessional, e assinala a sua regeneração espiritual depois de quase uma década de deserto.

Detentor de um estilo de movimento raro, gracioso e também enganadoramente simples, Kazuo Ohno perseguia implacavelmente a verdade e expiação nas suas improvisações de palco e nas conversas com os seus alunos dos workshops. As suas performances são famosas pela espontaneidade, humor e qualidades sombrias e, por vezes, até pela frieza da sua intensidade. Ele não exige um espaço vasto, nem propõe a criação de um universo, ele fá-lo simplesmente por permanecer imóvel, nunca parecendo pertencer a um espaço ou tempo particulares. O tempo e espaço ganham vida pela pura força da sua presença. Alguns bailarinos, tal como Ohno, tornam-se tenazes com o medo e a escravidão, a fragilidade, o amor e a falha. Em todas as suas performances, Ohno procura provocar um volte-face emocional no modo como o seu público responde à vida, à morte e aos que os rodeiam. Um princípio central do seu trabalho é a ideia que a dança deve conduzir, de igual modo, o bailarino e o espectador a questionarem-se acerca do modo como conduzem as suas vidas, individual ou colectivamente.

Uma dança humana

Em nenhum outro lugar a filosofia de vida de Ohno se torna mais aparente do que em A minha Mãe (1981). Aí, ele abre um túnel sob a noção convencional da dança enquanto exercício coreográfico. Existindo algures no interior de um universo imaginário, a brilhante atmosfera desta peça, repleta de momentos de nostalgia e melancolia, oferece a Ohno uma plataforma para desnudar a sua alma, uma alma atormentada por várias camadas de culpa. A sua mãe retorna à vida enquanto ele graceja no palco com uma pequena mesa de servir. Todas as suas criações são desenhadas a partir da sua experiência pessoal. A sua vida é o tema da sua dança. Subjacente a um profundo sentido de perda, o que permeia esta peça é o facto da tragédia não ser estranha à sua vida: a sua mãe testemunhou o perecer de dois dos seus filhos antes destes poderem chegar à idade adulta: a irmã mais nova de Ohno morreu na rua atropelada por um carro, e o seu irmão bebé morreu nos seus braços. A perda é de novo o tema de uma outra performance memorável, O Mar Morto (1985), desta vez a do seu pai.

Dentro da aparente loucura e excentricidade teatral de Ohno jaz uma enorme humanidade. Contrariamente a muitos artistas contemporâneos, Ohno dificilmente se preocupa com o drama do indivíduo isolado. Na sua perspectiva, nascemos todos neste e deste universo, e, como tal, há inexoráveis limites entre um e outro. Ele acredita fervorosamente que os laços mútuos entre a individualidade do ser humano e o mundo animal são invencíveis. Ohno é o artista da simbiose. E, igualmente, em forte contraste com muitos dos seus contemporâneos, sejam bailarinos de butoh ou outros, Ohno alegremente conduz os membros do público em direcção à redescoberta da sua comum humanidade. A sua última preocupação é que o espectador se erga no final de uma performance sentindo-se verdadeiramente grato por estar vivo.

Ele não é embaraçosamente emocional nem faz troça do sentimentalismo. A sua abordagem é directa, a sua arte arguta; não estranha às nossas atribulações quotidianas, Ohno não tenta dissimular as suas fragilidades. Em qualquer dos casos, acentua as nossas insuficiências. Os figurinos de Ohno em palco são cortados das mesmas roupas que as da sua mãe. E Midori Ohno e La Argentina são figuras positivas, personagens afirmativas, cuja missão na vida foi dar e partilhar.

Para apreciarmos totalmente os trabalhos de corpo de Ohno, devemos considerá-los no amplo contexto da sua evolução como ser humano, de modo a que, no seu trabalho, esteja tudo interconectado. Não há fronteiras entre o palco e o seu dia-a-dia. Kazuo Ohno não comuta entre a sua casa e o teatro. Intensificando as asas no palco, Ohno invariavelmente carrega consigo a bagagem do dia-a-dia, as frentes de guerra em que combateu, as suas tragédias e alegrias pessoais. Nada muda e no entanto nada se mantém tal como fora. A sua maquilhagem branca não esconde uma face marcada pela idade, os seus figurinos não camuflam um corpo menos vigoroso ou menos jovem.

Adaptado do texto publicado na revista Ballettanz XX, a quem se agradece a cedência. Tradução do inglês: Virgínia Mata.

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Texto de Tiago Manaia

capa 'The crying light' / Foto divulgação

capa 'The crying light' / Foto divulgação

No outro dia usei a expressão “comeback” para me referir ao japonês Kazuo Ohno, e chamaram-me a atenção. Disseram-me: “Tal expressão não se pode utilizar no seu caso pois ele nunca chegou a partir”. Usei-a porque no início do ano, os quatro cantos do mundo foram invadidos com imagens do coreógrafo.

Antony Hegarty, líder da banda Antony & the Johnsons, escolheu uma imagem de Kazuo Ohno para a capa do álbum The Crying Light. A sua escolha explicou-a como uma procura de um longo caminho artístico e espiritual. Com Kazuo Ohno, dizia à revista Les Inrockuptibles, aprendeu a encarar as etapas de vida como uma eterna primeira vez. Antony defendia-se assim da expectativa dos que aguardavam o seu regresso depois do êxito que encontrou com o álbum I Am a Bird Now. Ohno foi o seu ídolo de adolescência.

A imagem utilizada no disco de Antony & the Johnsons de 1977, ainda Ohno dançava. As imagens que são utilizadas nestas páginas são recentes, foram tiradas em novembro de 2008 pelo fotógrafo e designer de moda francês Jacques Le Corre. Nelas, Ohno está acamado, “dans son lit de mort” como diz a expressão francesa.

Le Corre tentava há já alguns anos fotografar o coreógrafo. Em 2008 enquanto viajava pelo Japão, entrou em contacto com a família de Ohno e foi-lhe dada autorização para avançar com o projecto de imortalizar pessoas que admira. Não pensava encontrar o coreógrafo no estado em que encontrou.

Tinha imaginado uma maquilhagem especial para as fotografias, tinha flores e uma coroa para lhe pôr nos cabelos. No jardim da casa de Ohno encontrou depois pequenos azulejos feitos pelos netos, fotografou-os para os sobrepor mais tarde sobre as imagens (é o efeito que se vê por cima do rosto de Ohno, na primeira foto) .

Jacques Le Corre tornou-se célebre por desenhar chapéus, por isso pensou naturalmente em fazer um chapéu com alguns dos elementos que levava para a sessão fotográfica. Abdicou desta ideia, devido ao estado débil de Ohno, utilizando somente a coroa . Agora constata que dessa coroa ressai algo de mortuário, mas naquele momento diz ter sentido outra coisa, “era a vida que continuava” – dizia-nos ao telefone de Paris – “a morte que se misturava com a vida, e a tornava irreal ”.

Kazuo Ohno esteve consciente durante toda a sessão fotográfica.

O coreógrafo viveu o auge da sua carreira tardiamente, entre os 70 e os 90 anos de idade. Diz-se que gostaria de poder morrer em palco.

O termo “comeback” não se aplica realmente a Ohno. “Para sempre”, sim.

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