O solo "Vozes do outono" foi aprovado pela Lei de Incentivo à Cultura pelo Edital 265-10 de Pesquisa em Dança da Casa Hoffmann Centro de Estudo de Movimentos em 2011 pela Fundação Cultural de Curitiba. A estreia aconteceu no dia 27 de setembro de 2011 no evento DANCON Liga Cultural de Dança em Belo Horizonte.

domingo, 20 de março de 2011

Butô, Kazuo Ohno, dança japonesa e eu? por Letícia Sekito

(Texto original retirado do site do idança no link aqui. Yiuki)


Não me lembro exatamente da primeira vez que ouvi falar sobre butô, mas me lembro de ter uma pequena imagem feita na cabeça de algo que era estranho, misterioso, subversivo e japonês.

Diferentemente de muitos brasileiros, eu primeiro ouvi falar da dança butô e somente depois de Kazuo Ohno. Aqui no Brasil, Kazuo Ohno, butô e dança moderna japonesa são coisas que quase se confundem ou se fundem na maioria das vezes. E isso, eu fui me apercebendo devagar.

Por volta de 1996/1997, quando tinha acabado de voltar da minha formação em dança realizada em Lisboa, no estúdio que hoje conhecemos como C.E.M. – Centro em Movimento, dirigido por Sofia Neuparth, comecei a me apresentar com pequenos solos e performances e fui sendo surpreendida por determinadas reações do público:

“Você faz butô?”, “O gestual das suas mãos parecem ser de dança japonesa…”, “Há algo no seu movimento que me lembra o butô. É butô?” E isso era muito estranho para mim.

Sempre respondi que realmente nunca fiz butô, que trabalhava com dança contemporânea, improvisação. Hoje, a única coisa que posso dizer é que o meu querido professor e artista Peter Michael Dietz (com quem estudei durante cinco anos em Lisboa) fez – entre várias outras coisas – parte de uma companhia dinamarquesa, a DanceLab, que trabalha no viés do butô. Mas confesso que, no fim dos anos 90, eu nem sabia exatamente o que seria esse butô tão presente no imaginário dos artistas aqui no Brasil. Comecei a me incomodar com isso e percebi que tinha de me aproximar desse butô, para saber porque havia pessoas que enxergavam essa conexão com o meu dançar.

Tive sorte. Em 1997, conheci o Kazuo Ohno meio de surpresa. Para ser mais exata, conheci um Kazuo presente no frenesi das pessoas que o esperavam encontrar para um workshop e espetáculo, no SESC Consolação, em São Paulo.

Confesso que fiquei muito cética e desconfiada com aquela comoção e sensação de idolatria frente a um artista que boa parte das pessoas ainda não tinha visto. Me perguntava: será que todas estas pessoas realmente conhecem o trabalho do Kazuo? Será que já estiveram com ele mesmo? Ou seria a força do fenômeno “fama que antecede a experiência”? Ou este arrebatamento se deveria ao caráter exótico de um artista vindo lá do Japão, terra distante e já venerada pelo Ocidente, que faz uma dança outra, uma dança “fresca” aos nossos olhos de turista?

Curioso foi o workshop. Parecia que estava tão perto e tão distante do Ohno san. Acho que, por um lado, eu me sentia um pouco à parte do todo porque havia uma sensação mista de deslumbramento, respeito, expectativa pré-concebida na sala, e isso me desconcertava um pouco. Por outro lado, era complicado irmos recebendo algumas instruções mediadas de Ohno para seu filho Yoshito Ohno, de seu filho para o tradutor e finalmente do tradutor para nós, numerosos na sala. Sem contar que a duração do workshop foi curta, curtíssima. Trabalhamos com tudo muito simples, explorando imagens/metáforas, sensação do corpo para o movimento, imaginação, improvisação. Me lembro da imagem de uma flor que desabrocha. Muito simples. Nada muito revelador. Tranquilo. Simples.

Mas à noite, teatro lotado, público “expectando”, momento da apresentação de Kazuo, sempre acompanhado de seu filho Yoshito.

Mudança.

No momento em que o vi dançar realmente pude sentir e conhecer o outro Kazuo, o artista. O seu estar mudou o lugar, mudou concretamente o estar da maioria das pessoas, pelo menos daquelas que foram atraídas e envolvidas pela sua energia sincera, forte e amorosa.

Kazuo vibrava numa sintonia diferenciada, onde a expressão de pessoa, de arte, de comunicação e de existência plena se concretizavam num dançar/ser sincero e belo. E ainda muito mais. Patéticas parecem minhas palavras ao tentar descrever o que seria aquela dança ou o artista. Naquela apresentação, ao mesmo tempo nada “grandiosa” ou “espetacular”, no sentido que costumamos dar a um acontecimento cênico, mas incrivelmente poderosa. Algo que faz a diferença no mundo.

Eu poderia parar por aqui. Mas há outros Kazuos que se foram revelando com o tempo. O meu, nosso tempo. E o curioso é que fui conhecendo estes outros Kazuos aqui em São Paulo, longe do Japão, em diversas atividades artísticas, palestras e cursos realizados na Fundação Japão, no SESC São Paulo[1], ou em algum evento relacionado ao butô, e sobretudo, com a pesquisa da professora Christine Greiner e do Centro de Estudos Orientais, que me ajudou a abrir caminhos para novas perguntas, novos desfrutes e enriquecedores olhares sobre: o corpo japonês, o butô, o próprio Kazuo e Tatsumi Hijkata, Min Tanaka e outros artistas deste movimento ligados ao cinema e teatro, à fotografia (Eikoh Hosoe), à literatura e à poesia, e sobretudo, a uma reflexão sobre os contextos cultural-artístico e político-social do butô no Brasil e no mundo.

Não somente eu, mas várias outras pessoas conheceram e vão conhecer ainda um outro Kazuo: o Kazuo Memorável, documentado através de registros em vídeos, fotos e em testemunhos de artistas, pessoas próximas, alunos e admiradores, sem falar do mundo virtual, no próprio site do seu estúdio, no youtube e aqui no idança.

Mas há um Kazuo, que recentemente está mais presente e que me assusta muito mais do que me estranha.

É o “Kazuo Ohno-Selo de Garantia”, que faz parceria com o “Butô -Selo de Garantia”. Não é de agora, mas com o falecimento de Kazuo, temos de observar muito bem como seu nome é e será citado, usado e divulgado.

Agora como nunca ele é selo de garantia, é marca.

Vemos muito disso por aí: no Youtube, nos currículos artísticos, em projetos de pessoas que fizeram um workshop de um dia, uma semana ou um mês e que dizem que dançaram com Kazuo Ohno, ou aqueles que se mascaram com maquiagem branca, fazem movimentos lentos, espasmódicos, “sofridos”, que dançam a vida/morte, o útero/a mãe/natureza, e cedem ao devaneio e aos “impulsos internos” e que por isso, dizem: faço butô. E se por sorte ainda têm “olhos puxados”, daí é garantia total. “É Kazuo, é butô, é de vanguarda? Pode consumir.”

Muita nebulosidade neste momento.

Que tal irmos com calma?

Butô foi um movimento artístico de vanguarda. Surgiu num contexto bastante específico em uma Tóquio pós-guerra, nos anos 50 do século passado, envolvendo artistas da dança, do teatro, da performance, do cinema, da literatura e das artes visuais. A repercussão do movimento foi forte, mas desagradável no Japão, muitos artistas para não passarem fome ou para cuidarem da sua saúde imigraram para o Ocidente, para o lugar onde o butô obteve um forte reconhecimento. Os artistas se adaptaram e se reinventaram em terras estrangeiras.

Mudanças.

Outro momento para o butô. Os artistas mudaram.

Mas o Ocidente ainda não se cansa de etiquetar dançarinos japoneses em “butoh dancers”, mesmo quando os próprios artistas não se vêem como tais.

Agora o butô vê seus precursores Hijkata e Ohno falecidos. E agora temos Kazuo Ohno – Selo de Garantia, ou como já ouvi falar Kazuo Ohno - “uma grife”.

Como se configura o butô hoje em dia?

Será possível se fazer butô hoje em dia?

De que butô estamos falando?

Kazuo Ohno não se interessou em desenvolver um sistema de aprendizado do seu butô, generosamente compartilhava sua experiência de vida e arte com quem quisesse participar de suas aulas abertas e gratuitas. Não pensava em “ensinar butô” a ninguém, e não nos deixando um método seu, como fez Hijikata em seu “butô-kabuki, (…) um possível método de ensino e de formação de jovens artistas”, talvez tenhamos que nos contentar em ficar com vestígios e rastros valiosos, os felizardos que puderam ver Kazuo em cena, guardarão em seus corpos memórias de um lindo Kazuo.

Talvez o nome do evento “Vestígios do Butô”, realizado em 2004, também no SESC Consolação, nos dê uma boa pista sobre o futuro do butô. E talvez não seja interessante ficarmos procurando por ‘fazedores de butô”, ou nos “herdeiros do butô Kazuo Ohno” (ai que medo!).

Em uma conversa muito interessante como a pesquisadora Christine Greiner, coloquei a dúvida de como olhar para o butô hoje, já que sabemos que não é por copiarmos os movimentos lentos com concentração de energia interna do movimento ou pintar o corpo de branco e lidar com os temas da morte/vida, “dançar uma flor ou pedra” ou seja, copiar uma “estética butô” para se fazer butô.

O que nos resta hoje?

Memórias, vestígios, traduções, aproximações, conversações?!…

Talvez pudéssemos observar trabalhos artísticos que possam dialogar, se conectar, se tocar com a questão do “corpo em crise”, mas querer ser, fazer, ter butô na sua dança? Talvez seja um grande equívoco a ser evitado.

Momento difícil, reconhecer a perda.

Letícia Sekito é diretora e dançarina da Companhia Flutuante. Trabalha com improvisação, criação coreográfica e performance. Formada pelo C.E.M – Centro em Movimento, Lisboa (90-96). Tem interesse na relação entre corpo, cultura e dança. Faz parte do Centro de Estudos Orientais, coordenado por Christine Greiner, e do Centro de Estudos em Dança, coordenado por Helena Katz.

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