(Texto original retirado do site do idança no link aqui. Yiuki)
Entre os eventos de dança que fazem parte da comemoração do centenário de imigração japonesa no Brasil, dois merecem destaque. Um deles é a mostra TOKYOGAQUI, no Sesc Avenida Paulista, que apresenta uma vasta programação e homenageia os 101 anos de Kazuo Ohno, além do trabalho do coreógrafo Takao Kasuno, introdutor do butô no Brasil. O outro é a palestra “Cena Dança Contemporânea, Japão”, ministrada pela artista e produtora japonesa Mayumi Nagatoshi, no dia 13 de março, no Teatro de Dança. Responsável pela vinda do grupo Condors ao Brasil, presidente da An Creative Inc. e membro da Associação de Dança Contemporânea do Japão, Mayumi apresentou um painel sobre a história da dança contemporânea no Japão e as recentes tendências de diversas companhias.
Primeiros passos sem kimono
Mayumi partiu do que ela chamou de “Fase Inicial” da dança contemporânea no Japão, de 1912 a 1940, quando houve a primeira introdução da dança ocidental naquele país. Novas técnicas de balé clássico foram trazidas, principalmente, pelo mestre italiano G. V. Rosi para treinar os atores do Teatro Imperial. “Os homens passaram do kimono para a meia-calça, o que causou grande choque no meio artístico da época”, explica Mayumi. Em 1916, Baku Ishii, um dos discípulos de Rosi, apresentou Dance Poem no Teatro Imperial. Esse evento marcou o início da nova onda de dança contemporânea que começava a ganhar corpo no Japão.
Nesta época, a influência alemã no Japão foi grande por conta da Segunda Guerra Mundial. Baku Ishii e Michio Ito foram os pioneiros da primeira geração de artistas que deixou o país para estudar na Alemanha, principalmente, com Jacques Dalcroze e, mais tarde, com Mary Wigman, mentora da dança de expressão alemã. “Baku Ishii desenvolveu seu próprio método de ensino de dança, explorando-o no sistema acadêmico do Japão”, diz Mayumi.
Associação de Dança Contemporânea
Ao final da Segunda Guerra Mundial, o Japão ganhou status de potência econômica, mas a cultura ainda não recebia apoio governamental, o que fez com que os artistas se dedicassem mais ao ensino da dança do que às performances, que na época davam muito pouco lucro. Nesse momento começaram a surgir afiliações de artistas de dança. A primeira foi a All Japan Dance and Ballet Association, que incluía todo o tipo de dançarinos que utilizavam técnicas ocidentais de dança. Em 1948, dançarinos de balé, dança moderna e dança folclórica, como o Flamenco, fundaram a The Japan Dance Artists Association, tendo Baku Ishii como primeiro mentor. Dez anos mais tarde, foi formada a Japan Ballet Association, para a qual migraram muitos bailarinos, deixando o último grupo apenas com artistas da chamada dança contemporânea. Em maio de 1972, este grupo formou a Associação de Dança Contemporânea do Japão. “Foi uma associação muito importante no início, porém, mais tarde, transformou-se em um núcleo de conservadorismo exacerbado na dança”, diz Mayumi. Felizmente, muitos se opuseram a esses ideais herméticos, dando origem a pensamentos inovadores.
Hijikata-Ohno
No fim dos anos 50, nascia o butô, estética que chocou a comunidade de dança da época, acostumada aos padrões modernos ocidentais. Afetada pela repressão, pela ocidentalização forçada e pela guerra, tematizou a morte, a sexualidade e o sofrimento humano. Assim, os ventos sopraram em uma nova e inusitada direção quando, em 1959, foi apresentada Kinjiki para uma platéia ultrajada. Era o início do ankuko butô, ou “dança das trevas”, inaugurado por Tatsumi Hijikata, que, ao lado de Yukio Mishima e do fotógrafo Eikô Hosoe, formatou o que hoje é conhecido como o pensamento da dança butô.
Das pesquisas estéticas dos “movimentos” do corpo morto surgiram posições arquetípicas geralmente associadas ao butô, caracterizadas por convulsões espasmódicas, olhos revirados e língua para fora. Ao mesmo tempo, a organização performática do início deu lugar a um outro tipo de criação coreográfica e de repertório. De 1960 a 66, Hijikata trabalhou com Kazuo Ohno – a quem é atribuída a “alma” do butô -, seu filho Yoshito Ohno, Mitsutaka Ishii e Akira Kasai. Foi também quando Takaya Eguchi, discípulo de Wigman, e Harald Kreutzberg, ensinaram os princípios da dança de expressão a Ohno. “Nos anos 50 e 60, o butô foi financiado por líderes culturais e tornou-se muito popular no Japão como estética underground”, afirma Mayumi.
Butô-botão
Na década de 70, os aprendizes de Hijikata e Ohno seguiram caminhos próprios e diversos, muitos deles instalando-se na Europa, configurando o que Christine Greiner chama de “butô-botão”, ou seja, “mediações e maneiras de ordenar o mundo que, lançadas em uma rede de informações estranha àquela em que foram concebidas, transformam butô em botão[1]. Em 1972, Akaji Maro, fortemente influenciado por Hijikata, montou a companhia Dairakudakan, de onde partiram os principais coreógrafos que atuam até hoje pelo mundo. Segundo a crítica de dança Kazuko Kunnioshi, a primeira performance oficial de dança butô na Europa aconteceu em janeiro de 1978, no teatro Nouveau Carre, em Paris, com Butoh-há Sebi e o grupo Ariadone[2]. “Quando eu danço, existem dois eu’s que coabitam: um que não é mais controlado, em estado de transe, e outro que observa com lucidez o primeiro. Às vezes esses dois eu’s coincidem e engendram uma espécie de loucura branca, próxima do êxtase. É esse estado que deve buscar o dançarino de butô. Eu danço para esse momento privilegiado”[3], diz Carlotta Ikeda, diretora do Ariadone, em seu site.
Min Tanaka foi outro coreógrafo que partiu para uma carreira independente e nos anos 70 começou a criar suas próprias coreografias explorando o movimento através da improvisação. Atualmente, colabora com artistas visuais, músicos, companhias de ópera, teatro e grupos de dança no Japão e em outros países. Tanaka diz em seu site a respeito de um workshop: “Espero que todos compreendam que ele de nenhuma forma pretende ensinar butô; eu preferiria ir contra a tendência de acreditar que existe um gênero de dança chamado butô. (…) Estou vivendo em busca da dança que não usa o corpo como uma ferramenta”[4].
O casal Eiko e Koma também partiu para a Europa em busca de uma movimentação própria até se fixar em Nova York, onde, desde 1976, vem construindo um processo muito pessoal de dança. Após estudar com Manja Chmiel, discípula de Mary Wigman, Eiko e Koma mudaram-se, em 1973, para Amsterdã e nos dois anos seguintes excursionaram pela Alemanha, Holanda, Suíça e Tunísia. Incentivados por Lucas Hoving, na época dançarino da José Limón Dance Company, mudaram-se para os Estados Unidos, onde estrearam, em 1976, com White Dance. Desde então, apresentam-se em inúmeros teatros, universidades, museus e festivais, além de ambientes ao ar livre, como em River, The Caravan Project ou Tree Song, entre outros. O casal não usa butô para designar sua dança, o que não significa que são ou não são butô. Eles costumam dizer que dançam aquilo que importa para eles. Estão interessados na interação da arte com o meio ambiente e trabalham com as percepções do corpo de forma simples, poderosa, autoral e muitas vezes mimética. “Abandonamos Hijikata e em seguida Kazuo Ohno, este por duas vezes, pois não gostamos de ficar muito tempo perto de pessoas importantes”, brincou Eiko durante palestra que integrou a mostra TOKYOGAQUI, em que apresentaram Death Poem.
Revolução nos anos 80
Na década de 80 houve um grande passo na dança contemporânea japonesa com o surgimento do que Mayumi chama de gênios, como Saburo Teshigawara, que repentinamente surge na cena de dança, em 1985, à frente do grupo Karas, inspirando outros jovens dançarinos. Karas busca uma nova estética que não esteja limitada aos conceitos convencionais pré-estabelecidos em cada categoria de dança no Japão. “Ser artista nesse país significa encarar as conservadoras restrições sócio-psicológicas escondidas debaixo de uma superfície aparentemente serena”, diz o descritivo do grupo em seu site[5]. “Esperamos agir com nossos próprios métodos respeitando possibilidades ainda não descobertas. Poderemos descobrir dúvidas ou questões. Queremos expressá-las por meio da ação”.
Ao mesmo tempo, formam-se grupos compostos por artistas de diversas áreas do conhecimento, como cinema, arquitetura e música. É o caso de Pappa Tarahumara, fundado em 1982, e Dumb Type, em 1984. O primeiro inspira-se no modo de vida peculiar dos índios mexicanos Tarahumara, que dão nome ao grupo. Seus trabalhos são caracterizados por um senso de tempo e movimento que eles chamam de “asiático”, em que intérpretes, objetos de cena, música, iluminação e figurino assumem a mesma importância[6].
Conhecido por representar um mundo sombrio, cínico e cômico em que a tecnologia é uma forma de vida, Dumb Type é um grupo colaborativo de artistas formados em disciplinas variadas, incluindo artes visuais, arquitetura, composição musical e programação de computadores. Por estarem sediados em Kyoto, antiga capital do Japão, descrevem-se como estando mais para o global do que para o local, mais para o contemporâneo do que para o tradicional[7]. Segundo Mayumi, esses grupos permitem o início de um processo de hibridização do universo da dança no Japão.
É nesse período também que o trabalho de Sankai Juku, da chamada segunda geração do butô, ganha notoriedade no exterior. Fundada por Ushio Amagatsu, em 1975, a companhia já passou pela Europa, Estados Unidos e Ásia, e vem estreando um novo espetáculo a cada ano no Theatre de la Ville, em Paris. “Podemos dizer que a década de 80 foi o grande momento de revolução na dança no Japão, abrindo todo tipo de possibilidade para a dança”, endossa Mayumi.
Novas sensibilidades
Soma-se a esse cenário de reviravolta artística a explosão da “bolha econômica” japonesa na década de 90, que contribuiu para transformações na dança contemporânea. O período de surgimento de jovens sensibilidades encontrou seu clímax com a formação de grupos como Strange Kinoko Dance Co, criado em 1990, formado apenas por mulheres, que utilizam elementos do fashion e do design, e a companhia Leni-Basso, fundada em 1994, por Akiko Kitamura, conhecida por produzir um “teatro multimídia”, utilizando a computação gráfica e intensos efeitos sonoros e de iluminação. Há ainda o grupo H.Art Chaos formado por mulheres da Associação da Dança Contemporânea do Japão, e a Natural Dance Theatre, dirigida por Shinji Nakamura. Na década de 90, Mayumi destaca ainda o trabalho de Kim Itoh como parte da terceira geração de butô, quando a dança japonesa, considerada de difícil compreensão e até certo ponto egóica demais, passa a ser mais bem assimilada pelo público.
Japão pop
No século 21, assistimos ao desenvolvimento do aspecto do entretenimento no processo de evolução da dança japonesa. Os novos grupos demonstram um desejo de se comunicar com um público mais amplo e a dança torna-se mais popular, destacando-se cada vez mais na mídia e, sobretudo, recebendo apoio financeiro. Mayumi sublinha o fato do grupo Noism ter sido o primeiro a receber apoio do governo japonês durante um ano inteiro. Segundo ela, o que poderia caracterizar essa nova geração de artistas é que não querem ser categorizados em um gênero particular de dança.
É o caso do grupo Condors, que apresentou Júpiter – Conquista da Galáxia, no Teatro Sérgio Cardoso, como parte do programa “Cena Estrangeira”. Fundado em 1996, o grupo formado apenas por homens se tornou conhecido pelo seu tratamento satírico à cultura pop japonesa e vem arrancando gargalhadas – quase histéricas – e aplausos calorosos nos diversos países em que se apresenta. Com figurinos que remetem às diversas tribos japonesas, como o uniforme escolar, as roupas “da moda” e o preto, dialogam principalmente com o público jovem. “Os jovens não estão interessados nas formas tradicionais de arte. A mídia dá destaque à cultura pop. Nós não temos formação nas formas tradicionais de arte, então temos que criar o nosso próprio estilo”, afirma Ryohei Kondo, diretor do grupo.
Como o próprio Kondo define, tudo se passa como se estivéssemos diante de uma televisão maluca, trocando invariavelmente de canal. O espetáculo começa fazendo referência a toscas vinhetas publicitárias, como “Golden Condors Cross” e “Universal Condors Pictures”, e a temas recorrentes dos noticiários internacionais, como o aquecimento global e a necessidade de um “carro ecológico”, as Olimpíadas de Pequim e, no caso do Brasil, a saia justa alfandegária com os espanhóis. Como num programa de variedades low-tech, diversos quadros de humor são apresentados de forma criativa, com direito a textos e gírias em português. Entre um esquete e outro, um solo no escuro ou danças em grandes grupos caracterizadas por movimentos intensos e ágeis; algo entre as artes marciais, o street dance e saltos que lembram os combates de videogames, regados a uma boa seleção de clássicos do rock e a guitarras revoltadas – e por vezes, ensurdecedoras demais.
A própria composição heterogênea do grupo – altos, gordos, baixos, magros – sugere a possibilidade de diferentes modos de movimentação. Em fila indiana todos preparam-se para da platéia pular para o palco; o gordo por sua limitação encontra outra forma de realizar a façanha, abrindo espaço para a criação e fazendo do erro um acerto por meio do riso em grupo. Afinal, entre um grupo de amigos, tudo é possível. “Nós basicamente pegamos a vida cotidiana, jogamos ela no palco e brincamos com ela. São apenas dez japoneses se divertindo”, resume Kondo. A platéia do Sérgio Cardoso vibrava, mas nem todos saíram satisfeitos. Até que ponto essa fórmula fará transformações na arte permanecendo viva por meio do corpo é uma dúvida que fica até a próxima visita da trupe por São Paulo. Enquanto isso, observamos com interesse essa cena contemporânea, formando daqui a nossa imagem da dança no Japão.
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Deborah Rocha é jornalista formada pela PUC-SP e dançarina de Dança Indiana Odissi.
[1] GREINER, Christine, Butô: pensamento em evolução. São Paulo, Escrituras Editora, 1998, p. 4.[2] Op. Cit., p. 31.[3] www.ariadone.fr[4] www.min-tanaka.com[5] www.st-karas.com[6] www.pappa-tara.com
[7] www.dumbtype.com
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